Muito provavelmente você deve ter lido, nas últimas semanas, sobre a descoberta, feita pelo mergulhador Steve Hickman, de garrafas de cerveja encontradas no porão de um navio submerso, o Wallachia, há mais de 100 anos, nas profundezas do mar da Escócia. E o que chamou mais a atenção foi o isolamento de leveduras do gênero Brettanomyces e Debaryomyces “vivas”, isoladas do líquido de dentro das garrafas, por cientistas de uma empresa de pesquisas em cerveja e colegas da Universidade de Sunderland no Reino Unido.
Não vamos aqui, repetir a reportagem que circulou em vários jornais e canais de divulgação no Brasil e no mundo. A história completa você pode encontrar em um click.
Mas com nós somos apaixonadas por leveduras e amamos a ciência por trás da cerveja vamos explorar aqui a verdade sobre como foi possível encontrar essas leveduras, depois de tanto tempo, e ainda “vivas”, sob condições tão extremas quanto as existentes no fundo do mar.
Afinal, que leveduras são essas?
Para começar vamos lhe dizer que as duas leveduras são encontradas normalmente ambientes fermentativos, como cerveja, vinho e outros alimentos e bebidas. Algumas espécies dos dois gêneros são reconhecidamente contaminantes do processo cervejeiro, consideradas leveduras selvagens, mas em cervejas particulares como Lambics e outras variedades de cervejas de fermentação espontânea são os organismos responsáveis, junto com outras leveduras e bactérias, pelas características aromáticas bastante complexas e fora do comum de cervejas belgas e as wild ales.
Mas, como essas leveduras conseguiram sobreviver por tanto tempo e em um ambiente tão hostil como o fundo do mar?
Essas leveduras não estavam exatamente vivas e sim em um estado que chamamos de latência. Nesse estado é como se ela ficasse em repouso, onde seu metabolismo fica bem mais lento, gastando pouquíssima energia para sobreviver. O que os pesquisadores fizeram foi “ressuscitar” essas leveduras com técnicas microbiológicas específicas.
Quem é essa tal de Debaryomyces?
A levedura Debaryomyces foi originalmente isolada de águas marinhas e é talvez uma das leveduras mais osmotolerantes e halofílicas (pode tolerar altos níveis de açúcar e sal, respectivamente) dentre as mais de 2000 espécies de leveduras conhecidas. Esse fato se deve a produção e o acúmulo de compostos como o glicerol que auxiliam a manter o equilíbrio osmótico nesses ambientes. Para você ter uma ideia a Saccharomyces cerevisiae tolera ambientes com até 10% de salinidade e a Debaryomyces níveis acima de 24%. Agora tudo começou a ficar mais claro, não é verdade?
A espécie, D. hansenii, por exemplo, pode ser encontrada comumente em muitos outros habitats com baixa atividade de água como queijos, carnes, vinhos, cervejas, frutas e solo. E apesar de serem fracamente fermentativas há um crescente interesse na utilização de linhagens da espécie isoladas em cervejas de fermentação natural belgas na produção das cervejas modernas.
A tão fantástica e temida Brettanomyces
Já a Brettanomyces é mais conhecida pelos cervejeiros e ao contrário da Debaryomyces é capaz de fermentar diversos açúcares do mosto cervejeiro, incluindo maltotriose, dextrinas e celobiose. É o terror das cervejarias quando não inoculadas propositalmente, pois são altamente resistentes aos fatores de stress, além de formarem biofilme e conseguirem sobreviver muito bem em condições de ausência de oxigênio se mantendo viáveis por longos períodos.Talvez seja por isso que a Brettanomyces conseguiu sobreviver por tanto tempo no fundo do mar
Novas leveduras, novas cervejas
Claro que existem muitos mais fatores que podem ter influenciado a sobrevivência dessas leveduras no ambiente encontrado, incluindo fatores metabólicos, fisiológicos e genéticos, mas só o fato de encontrarmos essas leveduras nessas condições nos abrem a cabeça para a aplicação dessas leveduras em vários processos biotecnológicos incluindo a produção de cervejas.
Atualmente existe uma busca, por pesquisadores e cientistas, de leveduras não convencionais (não-Saccharomyces) capazes de produzir cerveja e com grande potencial para a produção de vários compostos de aroma que agregam complexidade e intensificação de frutas na cerveja.
E apesar da indústria cervejeira demonstrar alguma resistência à utilização dessas leveduras, há um grande potencial desses microrganismos para a produção de cervejas, inclusive quando considerados em fermentações mistas e sequenciais, com a levedura cervejeira mais conhecida S. cerevisiae. Seria uma alternativa inovadora na produção de bebidas, trazendo diversidade e várias oportunidades de exploração para o universo das cervejas artesanais.
Por Luciana Brandão, Co fundadora e CEO do Laboratório da cerveja.
Bibliografia
1) Rosa and Peter, 2006. Biodiversity and Ecophysiology of Yeasts. ed: Springer-Verlag Berlin Heidelberg, 2006.
2) Breuer and Harms, 2006. Debaryomyces hansenii- an extremophilic yeast with biotechnological potencial. YEAST. vol 23, issue 6, 415-437.
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